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Sífilis – diagnóstico e tratamento

A sífilis é uma patologia infecciosa, sistémica, causada pelo treponema pallidum, subespécie pallidum.

Existem outras treponematoses, endémicas em várias partes do mundo, particularmente na América Central e do Sul, como a bouba, bejel e pinta, que são provocadas por outras subespécies de treponema, mas não são doenças sexualmente transmissíveis.

A sífilis surgiu de forma súbita na europa em finais do século XV, era até então desconhecida na medicina europeia. A teoria colombiana atribui o surgimento da doença na Europa, ao facto de marinheiros de Cristovão Colombo a terem trazido do “novo mundo”. A teoria ambiental considera que a sífilis é uma evolução de outras treponematoses, como a bouba e a pinta.

Durante vários séculos o principal tratamento foi o mercúrio, pouca eficácia e toxicidade significativa. Só no início do século XX começaram a ser usados derivados arsenicais, menos tóxicos mas igualmente pouco eficazes. O tratamento e a história da sífilis só foi radicalmente alterado com a introdução da penicilina em 1943.

A bactéria treponema pallidum foi identificada por Shaudinn e Hoffmann em 1905. É uma bactéria de aspecto espiralado, em saca-rolhas, que penetra na pele ou mucosas através de microabrasões existentes ou decorrentes do acto sexual. Multiplica-se e atinge o sistema linfáctico regional, e por disseminação hematogénea, diversas partes do corpo. A resposta imunitária, no local da inoculação, condiciona o aparecimento de um nódulo inflamatório que acaba por erosionar.

A transmissão da sífilis é quase sempre sexual, exceptuando a sífilis congénita em que a via de transmissão é transplacentária. A transmissão por transfusão sanguínea ou transplante de órgãos, está descrita mas é excepcional.

A sífilis tem uma evolução ao longo do tempo, com manifestações clínicas e fases silenciosas. É classificada em sífilis primária, secundária, latente e terciária.

Após o contágio há um primeiro período de incubação que dura 10 a 90 dias, normalmente 3 a 4 semanas. Surge então a lesão de sífilis primária. Nesta fase a serologia tanto a treponémica, como a não treponémica são normalmente negativas.

Em relação à clínica da sífilis primária, a lesão inicial é um pápula rosada que evolui para uma vermelho mais intenso, e rapidamente para nódulo ulcerado. É caracteristicamente uma úlcera indolor de superfície limpa, de consistência firme. É muito contagiosa, com exsudado seroso, ligeiro mas com presença de muitos treponemas. Cura em 3 a 6 semanas. É também característica a existência de adenopatia regional, firme, móvel em relação aos planos superficial e profundo, indolor, sem alteração da pele suprajacente. Pode persistir meses após a cura do cancro duro.

O diagnóstico de sífilis primária baseia-se na clínica, incluindo a história de contactos sexuais nos últimos 3 meses, na presença da lesão característica e na identificação do treponema por métodos como a microscopia de fundo escuro ou PCR. A serologia nesta fase é normalmente negativa.

Após a cura da úlcera da sífilis primária, existe um segundo período de incubação da sífilis, que pode durar de 6 semanas a 6 meses. Surgem então lesões de sífilis secundária (30 a 40% dos doentes não tratados). Estas lesões podem resolver e recorrer durante alguns meses. A serologia da sífilis torna-se consistentemente positiva a meio deste segundo período de incubação da sífilis.

A sífilis secundária cursa com sintomas gerais como febre, astenia, artralgias e cefaleias. É comum a existência de adenopatias pequenas, indolores, generalizadas e a presença de lesões cutâneo-mucosas. Inicialmente a erupção, costuma ser macular, não pruriginosa, a chamada roséola sifilítica, que acaba por resolver espontaneamente em dias ou semanas. Posteriormente, surgem lesões mais papulares, acobreadas, por vezes descamativas, sendo característico o acometimento das palmas e plantas. Podem surgir lesões mucosas, rarefacção das sobrancelhas e, apesar de pouco comum, é clássica a referência à alopecia em clareiras. Em fases mais avançadas podem surgir reactivações de sífilis secundária, com menos lesões, em áreas mais localizadas, que não devem ser confundidas com lesões de sífilis terciária. A sífilis secundária pode afectar também vários órgãos e sistemas, com manifestações diversas.

O diagnóstico de sífilis secundária assenta na clínica, na eventual demonstração de treponemas nas lesões mucosas e condilomas planos e nos testes serológicos que caracteristicamente são positivos nesta fase da sífilis, tanto os treponémicos como os não treponémicos.

Após terminarem as manifestações clínicas de sífilis secundária, alguns doentes vão manter serologia positiva mas sem qualquer manifestação clínica. É a fase designada como sífilis latente. Quando é possível apurar o tempo decorrido entre o contágio e a análise serológica de sífilis positiva, podemos classificar a sífilis latente como recente, se a exposição ocorreu há menos de 1 ano (a OMS considera 2 anos); se o contágio ocorreu há mais de 1 ano, a sífilis é classificada como sífilis latente tardia. Não sendo possível apurar o tempo decorrido entre o contágio e a serologia positiva, a sífilis é classificada de sífilis latente de duração desconhecida e, em termos de tratamento é equiparada à sífilis latente tardia.

Considera-se que a sífilis é latente recente se nos doze meses anteriores à análise positiva existe:

  1. prova analítica de seroconversão ou aumento de 2 titulações, que equivale a multiplicar por 4 o valor de teste não treponémico anterior;
  2. ou, se nesse ano anterior o doente teve manifestações inequívocas de sífilis primária ou secundária;
  3. ou, parceiro com sífilis recente;
  4. ou, a única possibilidade de exposição ocorreu nos 12 meses prévios;

Todos os outros casos são classificados como sífilis latente tardia ou de duração desconhecida.

Os testes não treponémicos são normalmente mais elevados na sífilis latente recente, comparativamente à sífilis latente tardia, mas não é possível fazer a distinção com base na serologia.

A sífilis latente não é sexualmente transmissível. O objectivo do tratamento é prevenir complicações decorrentes de evolução para sífilis terciária e a transmissão transplacentária, em caso de gravidez.

Cerca de 10% dos doentes não tratados acaba por desenvolver lesões de sífilis terciária, após vários anos, habitualmente dez ou mais. Nesta fase o VDRL/RPR é muitas vezes baixo mas positivo, enquanto os testes treponémicos se mantém em níveis elevados.

A sífilis terciária engloba várias apresentações clínicas, que podem existir em simultâneo ou isoladamente. Incluem lesões cutâneo-mucosas (gomas sifilíticas, sifílides tuberosas); lesões cardiovasculares (aneurisma da aorta, insuficiência aórtica); lesões nervosas (paralisia geral progressiva, tabes dorsal).

A apresentação cardiovascular da sífilis terciária pode ocorrer várias décadas após o início da infecção sendo o envolvimento da aorta ascendente o mais característico. Apesar de ser uma complicação rara, 80% dos casos fatais por sífilis são consequência do envolvimento cardiovascular.

Estima-se que seja relativamente comum o envolvimento do sistema nervoso central nas fases iniciais da sífilis, particularmente na sífilis secundária, mas se não existirem manifestações clínicas neurológicas ou oftalmológicas, não obriga a investigação específica ou alteração dos protocolos de tratamento habituais. Se existirem sintomas, aí sim, é necessária a avaliação neurológica completa com punção lombar.

A sífilis em contexto de gravidez é obviamente muito importante. Uma grávida com sífilis prévia ou adquirida durante a gravidez tem uma alta probabilidade de transmitir a infecção ao feto. Em caso de sífilis recente a probabilidade é maior mas o risco de transmissão existe sempre que a mãe tem sífilis, mesmo que seja uma sífilis latente tardia. A transmissão é normalmente transplacentária, apesar de também ser possível a transmissão durante o parto, se existirem lesões activas. As consequências podem ser dramáticas como morte peri-natal, baixo peso à nascença, hidropsia fetal, anomalias congénitas, sífilis activa no recém-nascido e sequelas como surdez, alterações neurológicas e deformidades ósseas.

O diagnóstico de sífilis é estabelecido pela clínica e exames laboratoriais. Dos exames laboratoriais, temos exames de identificação da presença do treponema através de microscopia de fundo escuro, PCR ou histopatologia. Estes exames normalmente só são aplicáveis a lesões recentes de sífilis primária ou secundária.

Os exames serológicos são os mais utilizados e dividem-se em dois grandes grupos, os não treponémicos que identificam anticorpos chamados de reaginas, que não são específicos de treponema, e os treponémicos que identificam anticorpos específicos contra antigénios treponémicos.

A serologia da sífilis pode ser requisitada por diversas razões. A mais óbvia é quando a clínica sugere que podemos estar perante uma sífilis. Mas é também pedida por rotina às grávidas e aos dadores de sangue ou órgãos, assim como aos doentes com qualquer infecção sexualmente transmissível, VIH, hepatites, ou indivíduos com comportamento sexual de risco.

Em todos os doentes com sífilis deve ser efectuado rastreio de outras infecções sexualmente transmissíveis, em particular o VIH, mas também hepatite B e C, devendo ser recomendada a vacina da hepatite B, se não existir imunidade.

Os testes não treponémicos mais utilizados são o VDRL ou o RPR. Dos treponémicos, os clássicos são o TPHA e o FTA-abs, mas alguns laboratórios começam a dar preferência a testes imunoenzimáticos ou de quimioluminescência, que são automatizáveis, pelo que consomem menos tempo na sua realização.

Existem vários protocolos de screening de sífilis.

Podemos começar por:

Opção 1: um teste treponémico, ou

Opção 2: um não treponémico, ou

Opção 3: simultaneamente um treponémico e um não treponémico;

Se começarmos por um treponémico e foi positivo, deve ser efectuado outro treponémico diferente para confirmação, e se também positivo realizar um teste não treponémico, que é fundamental para a avaliação da actividade da doença e seguimento após tratamento.

Se for efectuado inicialmente um teste não treponémico, se for positivo, deve ser confirmado com um teste treponémico.

Em relação aos testes não treponémicos é importante salientar que um teste não treponémico positivo não é suficiente, já que existem diversas causas de falsos positivos, pelo que será sempre necessária a confirmação por teste treponémico. O teste não treponémico deve ser quantitativo, pois é um marcador de actividade da doença e vai ser usado para avaliar a resposta ao tratamento. É necessária uma diferença de 4 vezes, equivalente a 2 diluições, por exemplo uma descida de 1:16 para 1:4, ou uma subida de 1:8 para 1:32, para considerar uma diferença clinicamente significativa entre dois testes não treponémicos.

Tratamento e seguimento

Tratamento da sífilis primária, secundária e latente recente: penicilina benzatínica 2.400.000 unidades, por via intramuscular, em dose única. Em caso de alergia à penicilina, excepto grávidas, a doxiciclina é a alternativa mais vezes utilizada, 200 mg/ dia durante 14 dias. O ceftriaxone poderá ser também uma opção mas não existem estudos suficientemente amplos que tenham validado a dose e a duração adequadas do tratamento. A azitromicina também poderá ser eficaz, mas existem casos descritos de resistência adquirida por mutação cromossómica.

É importante informar sobre a reacção de Herxheimer, caracterizada por febre, cefaleias e mialgias, que ocorre com frequência, sobretudo nos casos de sífilis recente, nas primeiras horas após administração da penicilina. Pensa-se ser consequência do efeito pirogénico decorrente da morte de grande número de espiroquetas. Não deve ser confundida com reacção alérgica à penicilina. O tratamento é apenas sintomático com antipiréticos.

Administrar penicilina ou outro tratamento antibiótico alternativo não garante que a sífilis fique curada. Não existem critérios definitivos de cura ou falência terapêutica. A avaliação serológica, deve ser efectuada, aos 3, 6 e 12 meses após tratamento e, considera-se que o tratamento foi eficaz se ocorreu uma descida de 4 vezes, equivalente a 2 diluições, no título do teste não treponémico.

Dos doentes com sífilis recente tratados, 15 a 20% podem não ter descida de 2 diluições após 6 a 12 meses. Estes doentes devem ser reavaliados para o VIH, não estando bem definida a melhor atitude perante esta situação. Pode ser mantido o follow-up clinico e serológico e decidir mais tarde, em função de resultado posterior, ou então efectuar novo tratamento, mas agora com 3 doses de penicilina benzatínica (1 por semana), ou fazer uma punção lombar para despiste de neurosífilis.

Tratamento da sífilis latente tardia, de duração desconhecida e sífilis terciária: três doses de penicilina benzatínica, 2.400.000 unidades, administrada uma por semana. Na alergia à penicilina, excepto grávidas, tratar com doxiciclina na dose de 200 mg/ dia, durante 4 semanas. Esta maior duração do tratamento justifica-se no conceito teórico que os treponemas poderão estar a dividir-se mais lentamente, no entanto a validade deste conceito não está demonstrada. Na situação de esquecimento de uma dose, se a dose seguinte for administrada no prazo de 10 a 14 dias, não deverá prejudicar a eficácia do tratamento. Nas grávidas não se deve facilitar e, se falhar uma dose no dia previsto, portanto 7 dias depois da dose anterior, recomeçar o esquema de novo.

Na sífilis latente o VDRL quantitativo deve ser repetido aos 6, 12 e 24 meses.

A punção lombar está indicada se um título inicial alto, maior ou igual a 32, não descer 2 diluições em 12 a 24 meses; ou se o título inicial aumentar 4 ou mais vezes; ou se surgirem sinais ou sintomas atribuíveis a desenvolvimento de sífilis. Se liquor negativo, repetir 3 doses de penicilina benzatínica. Se liquor positivo, tratar com equema de neurosífilis.

Por vezes, apesar do liquor negativo e repetição do tratamento, os títulos não baixam. O que fazer? Vigiar, repetir punção lombar, voltar a tratar? Deve ser decidido caso a caso por médico com experiência no seguimento destes doentes.

É fundamental rastrear e tratar os parceiros sexuais dos doentes aos quais foi diagnosticada sífilis.

No caso da sífilis primária devem ser avaliados os parceiros dos últimos 3 meses, mais o tempo de duração dos sintomas. Na sífilis secundária 6 meses, mais duração dos sintomas e na sífilis latente os parceiros do último ano.

Em relação ao tratamento dos parceiros sexuais, se o contacto sexual ocorreu há menos de 90 dias, com doente com sífilis recente, devem ser tratados, mesmo com serologia negativa (pois a serologia poderá ainda não ter positivado). Se o contacto foi há mais de 90 dias, deve ser efectuada avaliação clínica e serológica e tratamento em conformidade. Os parceiros sexuais de doentes com sífilis latente tardia, devem ser avaliados clínica e serologicamente e tratados em conformidade.